Resumo: Existem objeções à ideia de que é possível investirmos em ética. Nesse texto, eu procuro responder a algumas dessas objeções e mostrar que não só a ética é possível, como ela é necessária para vivermos. Diante da questão que nós colocamos em sala de aula, minha resposta é positiva.
É possível falar de ética num contexto como o atual, em que
em toda parte e a todo instante ouvimos falar de escândalos, fraudes e desvios
milionários feitos por empresas e pessoas que, envolvidas direta ou
indiretamente com a coisa pública, deveriam zelar por ela? Como fica nossa
confiança, nossa esperança em dias melhores, quando vemos índices
decepcionantes sobre educação, violência, tráfico, desintegração familiar e
social? Não é tolice bancar o certinho no país da malandragem e da gambiarra,
onde pouca coisa funciona direito, onde quase nada é pra valer?
Na verdade, não. Mesmo apesar de todas essas coisas, insistir na ética é algo imprescindível. Quando os jornais a cada dia exibem novas
notícias sobre corrupção, por exemplo, isso nos causa repugnância, mas nos mostra
como não devem ser as coisas. Não é para fazer propaganda ou apologia de
mercenários e corruptos, mas justamente para evidenciar o que há de podre na
sociedade e que precisa ser passado a limpo. Nesse particular, é até importante
destacar como a imprensa nos dias de hoje dá contribuição valiosa para a
construção de uma sociedade mais transparente e participativa, ao investigar,
ao publicar, enfim ao provocar as pessoas a refletirem e a tomar partido frente
aos desafios que as cercam. As próprias redes sociais também têm sacudido a
indiferença das pessoas. Portanto não é a quantidade de escândalos ou mesmo a
dimensão deles que nos desautoriza a buscar uma sociedade mais ética.
Há os que retrucam que hoje as coisas estão piores que
tempos atrás. Os mais velhos, talvez, repitam muito isso. O que dizer? Numa
discussão sobre ética, esse argumento não ajuda muito, seja porque é difícil afirmar
com exatidão que, por exemplo, não havia no passado corrupção na mesma
proporção de hoje, seja por que a defesa desse recurso carece de um
princípio que o sustente. Ninguém se incumbirá de discutir o grau do problema quando
o que interessa é sua pertinência ou não. Num breve panorama da história
ocidental, encontramos líderes singulares, legislações austeras, sociedades
pouco tolerantes. Porém, em todas elas é possível topar com corrupção, assassinatos,
enfim exemplos contrários ao que pregava a ordem e os costumes vigentes. Relembremos:
Platão, olhando para a política de seu tempo, queixava-se da demagogia, das
mazelas da democracia! Isso no séc. 5º a. C! Na Idade Média, toda a violência
da Inquisição não impediu o surgimento da Reforma Protestante, que denunciou os
desvios mais escandalosos da Igreja Católica. Hoje, na contemporaneidade, algumas
democracias estáveis experienciam um cansaço, um vazio institucional, no qual
os homens da política são apontados como irresponsáveis ou mesmo dispensáveis,
e o Estado, como incapaz de efetivar mudanças realmente relevantes para a vida
dos cidadãos. Em resumo, ontem e hoje, exemplos ao longo da história não faltam
de indivíduos, costumes e instituições frágeis e antiéticas. Logo, o foco
obstinado num passado saudosista não é algo relevante sob o qual podemos nos
apoiar para enfrentar os desafios éticos atuais.
Alguém poderá dizer: mas a defesa da ética não parece uma
causa perdida? Se nunca houve sociedades éticas, instituições irretocáveis, que
motivação nós temos para buscar isso hoje? Por que buscar ideais éticos se eles
nunca se efetivaram por completo entre nós? Eis uma afirmação bem realista! De
fato, primeiro é preciso reconhecer que ética é uma construção humana, tipicamente
ideal. Ela não está na natureza, nas coisas, nos objetos, na história. Se
ela é resultado de milênios de convívio social, ou de um aprimoramento biológico
de nossa espécie, ou ainda de outros fatores explicáveis cientificamente, isso pouco
importa. Parece mais apropriado destacar que nós, seres humanos, demos um
'salto' em relação aos outros animais, inventamos e aprimoramos um conjunto de práticas,
construímos dentro de nós uma realidade que não está na natureza. Nós sabemos
que a natureza não nos é mais suficiente. Nesse sentido, a perspectiva de viver
melhor, de forma mais equilibrada e justa deixa de ser apenas uma simples possibilidade,
para se impor a nós como um verdadeiro dever. O ser humano, responsável pela
invenção da ética, sente a necessidade de abraçá-la como uma obrigação, e isso,
para lembrar a clássica leitura de Kant, tem origem em nossa faculdade racional. Outra coisa
importante: ainda que os ideais éticos se apresentem como um horizonte aparentemente
inatingível, sabemos que é melhor buscá-los a desistir deles. Qualquer idiota
sabe que a civilização é melhor que a barbárie, que nós precisamos uns dos
outros para viver. Pense nos encarcerados: nenhum deles jamais se adapta à
prisão ou toma gosto por ela. Ainda que condenado justamente e consciente dos
seus graves erros, o preso se ressente de não poder usufruir da liberdade, da
companhia das outras pessoas, do que a vida coletiva pode lhe oferecer. Portanto,
a falta de ética na sociedade é motivo não para desistirmos, mas sim para a
buscarmos com mais determinação ainda.
Outro ponto comumente aventado é que geração vai geração
vem e mudanças nos valores ocorrem com frequência. De 40 anos para cá, por exemplo, muitos
costumes se alteraram radicalmente. Isso faz com que algumas pessoas concluam
que, se essa mudança é inevitável, então não há como buscarmos parâmetros
éticos ‘duradouros’. Os valores seriam meras imposições, imperfeitas e efêmeras.
Como responder a isso? De fato, os valores são uma construção sujeita a
revisões constantes, pois também o ser humano se reinventa social e
historicamente. Porém, algumas reflexões éticas, galgadas na condição humana e
nas necessidades que enfrentamos para viver em sociedade, mostram-se
pertinentes apesar do tempo. Eis por que até hoje nós estudamos, por exemplo, o
legado dos gregos para o Ocidente: porque eles nos deixaram ensinamentos que elucidam,
em profundidade, nossa forma de pensar e agir.
Sobre essa questão das mudanças provocadas pelo tempo, vale
a pena uma última observação: nós precisamos de valores (âncoras) para viver. Portanto,
de um lado não convém ficar mudando insegura e constantemente. Porém, de outro
lado, é importante reconhecer quando se faz necessário mudar e por quê. Isso
porque cada um de nós é co-construtor dos valores que estão aí. Você já
pensou nisso? Cabe a nós não apenas receber os valores, mas questioná-los e aprimorá-los.
Logo, se não tivermos uma posição ativa nesse processo, mesmo assim algo de nós
restará nele: nossa passividade, nossa indiferença ou nosso silêncio como
consentimento, o que não seria nada bom.
Vamos falar agora de um outro obstáculo ao avanço da ética:
a dificuldade de colocá-la em prática. Dentre os questionamentos levantados,
esse é um dos mais delicados, porque a resposta depende de um conjunto de ações
que mobiliza da família à sociedade. As dificuldades para construção de uma
sociedade com um nível ético mais elevado passam, sobretudo, pela educação. Da
infância à vida adulta, estamos sempre aprendendo, assimilando hábitos, interagindo
e partilhando valores. Portanto, quem ‘educa’ o sujeito não é apenas a família,
mas todo o entorno de relações em que ele se encontra. Daí que, se em alguma
etapa, ele deixou de receber instruções ou valores importantes, isso poderá
acarretar decifit ético quando ele
ficar adulto. O trabalho de identificar tais deficits e corrigi-los é extremamente complexo e se confunde com o
que chamamos de cultura. A questão sobre como educar indivíduos éticos é, de
fato, uma das tarefas mais importantes, mas também mais desafiadoras, pois supõe
que a sociedade como um todo abraça determinados valores, se importa com eles e
quer praticá-los em comum. Isso exige compromisso, reciprocidade, força de
vontade e muitas outras coisas. Sabemos que estas coisas contrastam com a natureza humana egoísta e a realidade em que vivemos, cindida por num individualismo excessivo.
Mesmo assim, apesar de todo o esforço que a busca da ética nos demanda, em que pese a natureza humana e suas inclinações
egoístas, ainda que nossas instituições ou nosso passado não sejam tão
inspiradores, mesmo assim... não podemos desistir de buscar. Porque só este
horizonte pode nos garantir que as coisas amanhã sejam melhores que hoje. Se
desistirmos, podemos ter certeza de que a vida em sociedade piorará ainda mais.
Nenhum de nós, sinceramente, quer isso.