Essa semana o escritor Luiz Hanns, na casa do saber,
lançou um vídeo em que
ensina como lidarmos
com pessoas irritadas. Indivíduos de pavio curto, diante de situações em
que suas expectativas não se concretizam ou sua referência de certo e errado
são confrontadas, tendem a taxar o outro e atribuir a ele intenções negativas.
Hanns conclui que é preciso um reaprendizado para mudar os padrões de
irritabilidade.
A internet se tornou talvez a principal válvula de escape de
nossas frustrações e irritações. É verdade que ela nos aproxima de quem pensa
como nós. A pertença a um grupo em que estão milhares de pessoas nos conforta e
parece conferir ‘legitimidade’ às nossas ideias. Para muita gente, isso é o
esteio de sua própria identidade. Independentemente do viés ideológico, é
difícil exercitar o pensamento divergente quando estamos imersos numa bolha, embebidos
de uma ideologia.
Mas a internet tem seus perigos. Hoje sabemos que à medida
que utilizamos uma ferramenta como o Google, por meio de algoritmos ele
identifica o nosso perfil, nossas preferências, nossos interesses. Com isso,
ele é capaz de oferecer sempre mais daquilo que já estamos predispostos a
gostar. É a confirmação e o recrudescimento das bolhas. Portanto, se você vai
navegar na internet ou nas redes à procura de informações não enviesadas,
esqueça!
Hiperpolarização
Irritabilidade + vida em bolhas + guerra de narrativas políticas
são parte do combustível para a polarização que estamos vivendo. A coisa é tão
intensa que mesmo pessoas que não têm perfil agressivo, diante da gritaria, do
xingamento, da discriminação e da violência, acabam assimilando um pouco dessas
reações e reproduzindo-as na internet. Você pode não ser um típico hater, mas o quanto você se deixa ganhar
por uma narrativa pode ser medido pelo quão tolerante você é ao ouvir alguém
falar algo que você não concorda. Faça o teste!
É curioso dizer, mas a política tem algo de semelhante com a
religião, porque contagia, leva a pessoa a se entranhar numa certeza e crer, por
princípio, que o errado é o outro, que o outro é cego ou ingênuo, ou pior:
que o outro é mal intencionado. O problema está sempre naquele que discorda,
ainda que ele seja meu vizinho, meu colega de trabalho ou mesmo meu parente de
sangue! Isso é espantoso, não? Pensar que por abraçar uma ideia, uma onda
ideológica (que em muitos aspectos é só uma ideia, não tem consistência ou não
se realizou) pessoas estejam rompendo com o que há de mais próximo e real, que
são os seus amigos e parentes! É surpreendente que muitos de nós não percebamos
nada de errado nisso.
Estamos todos sofrendo. Com as polarizações
políticas, ninguém mais escuta ninguém. Rachas e intolerância estão na
imprensa, nas redes sociais, na comunidade, em nossas famílias. O que a
internet deu foi extensão e visibilidade à ignorância, à repulsa, ao ódio
corriqueiro que no passado ficava restrito a mim ou aos meus próximos. Pior que
isso, o que esquenta as redes sociais, dá audiência a programas televisivos e
gera votos são as coisas negativas, as ameaças, o ódio. Como vamos lidar com
isso nós não sabemos ainda. É o Zeitgeist. Talvez ainda tenhamos de sofrer
bastante, enquanto indivíduos e enquanto sociedade, até percebermos que não
vale a pena continuar nesse belicismo todo.
A repercussão do
teatro
A repercussão só pode ser compreendida dentro dessa
atmosfera que acabei de apresentar. É bobagem dizer que o teatro continha algo
explosivo, novo, ‘subversivo’ etc. Na verdade, a peça não apresentou nada que
novelas, filmes e Netflix não mostrem cotidianamente. Portanto, aconteceu de
ser com o teatro, mas poderia ter sido com uma aula de sociologia ou de
história, com uma exposição de arte, com uma aula de filosofia, enfim qualquer
coisa.
A mãe que se apresenta indignada não procura o colégio para saber
o que houve. Com os poucos elementos de que dispõe, ela faz o julgamento e vai para
as redes sociais. Por quê?
Porque ela quer politizar a questão, expor a sua verdade
ideológica e porque... obviamente está interessada em visibilidade. Quem sabe
dos planos políticos dela? O sensacionalismo e a espetacularização são o que
mais viraliza e projeta pessoas. O
resto é conversa.
Se daqui a poucos dias, ninguém mais vai lembrar da repercussão
desse teatro, o que resta entretanto, ao lado das ações judiciais, é um
profundo desgaste, sobretudo para a direção do colégio. Depois de receber ameaças
de morte, execração pública, xingamentos e acusações de diversos matizes, é
difícil não reconhecer que, como estão as coisas hoje, reputações e anos de
trabalho podem ser arranhados ou até destruídos em menos de uma semana, de
forma gratuita e irresponsável. Mais um dos absurdos provocados pela
polarização.
Diante disso, nós nos perguntamos: a) existe limite para a polarização? b) na democracia, ganhar uma eleição confere à “narrativa vitoriosa”
o direito de inflamar a sociedade, silenciando, perseguindo ou execrando quem
pensa diferente?
A
Eu disse há pouco que com a polarização ninguém escuta mais
ninguém. Na verdade, ninguém respeita mais ninguém e o clima de perseguição e hostilidade
está se alastrando e se intensificando. O episódio com a deputada Joyce
Hasselman essa semana comprova isso. Ela subiu à tribuna para revelar os insultos
que tem recebido pelas redes sociais. Não satisfeitos em atacá-la, seus
‘inimigos’ agora miram a sua família. Querem intimidá-la, querem destruí-la. Mas
quem são seus detratores, afinal?
Hasselman é do partido do presidente, viajou e fez campanha
com ele, trabalhou para aprovar suas pautas na Câmara... e agora chora por
conta dos ultrajes encomendados pelo filho do presidente! Ou seja, nem os aliados
estão isentos das intimidações; nem os mais próximos estão livres de serem
linchados. De uma hora para a outra, milícias digitais tocam o terror em cima
de quem quer que seja, por que motivo for. Não há qualquer racionalidade,
qualquer coerência. Não há mais qualquer
limite. Sem querer diminuir a importância, veja que o episódio do teatro no
Hugo Simas é, então, uma mostra daquilo que está acontecendo não só aqui, mas
em Brasília, em toda parte, todo dia, com todo mundo. Se os adeptos do
linchamento digital intimidam e perseguem pessoas do mesmo grupo, o que não
farão com os adversários políticos?
Não dá pra admitir que nossa democracia esteja num período de
normalidade. Minha impressão é que as instituições não estão conseguindo conter
essa onda desestabilizadora, vide
o
episódio do envio ilegal de mensagens em massa durante as eleições: até
hoje aquilo paira e interroga! O que virá pela frente não sabemos. Ontem,
Hasselman usava a internet para ridicularizar oponentes, hoje ela é
esculhambada. Tudo pode acontecer. A tentação de usar as redes para intimidar, para
polarizar e tocar o terror pode se reverter também contra o grupo dos que estão
no poder. Eles se acreditam imunes, mas não estão.
B
A resposta para a segunda pergunta obviamente é não. Numa
democracia de verdade, quem vence a eleição, não tem o direito de querer calar
ou destruir os oponentes. Pelo contrário, uma oposição consistente e coerente é
indispensável para a democracia. Aqui, a necessidade de uma autocrítica se dirige a todos nós, independente da ideologia que professe.
Somos rápidos em falar, em julgar, em criticar os outros. Achamos
um absurdo determinadas coisas e nos indignamos. Apontamos os disparates, os erros de quem
pensa diferente de nós. Mas estamos realmente... ouvindo o outro, fazendo o
esforço de nos colocar no lugar dele para entender por que ele pensa daquele
jeito?
Quando alguém ensaia uma abordagem diferente da nossa, temos
a paciência para oferecer uma réplica consistente e respeitosa?
Como esperamos enfrentar a esquizofrenia das redes sociais se
não apresentamos um comportamento diferente do que está lá?
A palavra polarização exprime de forma apropriada o que está
acontecendo: não importa o lado, o que importa é quando a distância entre os
extremos é tão grande que impede qualquer comunicação entre eles.
O problema é que agimos muitas vezes como aquelas pessoas
que criticamos. Nos julgamos mais conhecedores, mais inteligentes, mais
próximos da verdade. Também exercemos, à nossa moda, intolerância e desprezo. Esquecemos
que a política é a arte do possível e que ‘verdade’ é algo que pressupõe debate
e consenso, portanto não é algo fixo e determinado, mas uma construção sujeita
a revisões e adaptações.
Em tempos de hiperpolarização, a maior de todas as tentações
é nos julgar mais puros, dotados de uma ideologia mais pura. Aí a coisa pega,
porque a segregação sutilmente se naturaliza e passamos a nos sentir seres
humanos melhores que outros. Aí, definitivamente, a diferença impõe uma
distância intransponível entre as pessoas.
Embora tensa e insana, a conjuntura pela qual estamos
passando nos choca, mas também nos interpela a repensar nosso olhar em relação
ao outro, nossa percepção sobre política, nosso comportamento em relação ao
coletivo. Pode ser um aprendizado. O que podemos esperar do futuro, aliás, tem muito a ver com o que estamos
oferecendo.