Tive o prazer de ler durante as últimas férias este livro inspirador, de Nato Amaral.
Atleta brasileiro, Nato se aventurou na corrida e se especializou na Comrades Marathon, talvez a ultramaratona mais emblemática de todas.
Realizada na África do Sul, esta é uma prova única, por seu grau de exigência, por sua altimetria, por sua história, pelo desafio que ela representa para qualquer corredor.
Em seu livro, Nato recupera cada um dos elementos que explicam por que ser comradeiro é fazer parte de um seleto grupo, e porque a conclusão da prova traz uma sensação irrepetível para o corredor.
Aspectos gerais do livro
A apresentação dos aspectos históricos da Comrades, as características da prova, a experiência desafiadora de enfrentar aquelas subidas todas e as emoções reservadas aos concluintes... tudo isso coroa uma narrativa contagiante, rica em detalhes, inspiradora.
Gostei da pegada confidencial, que confere um caráter realístico e divide com o leitor as dúvidas, as dores, a sensação das batalhas e as glórias de correr a Comrades. É algo realmente sensacional.
O livro imprescindível pra quem gosta de corrida e entende que a grande sacada do nosso esporte é a competição consigo mesmo, numa atitude de paciência e persistência, rumo à superação.
Me surpreendeu quando Nato diz que a Comrades não é pra todo mundo, que mesmo maratonistas tarimbados devem ter cautela...
Ou seja: é uma ultramaratona para os fortes, física e mentalmente falando.
De fato, passagens como a participação dele no Unogwaja Challenge, em 2014, exclamam. Ficamos impressionados, imaginando o limite daquilo que é possível extrair de um atleta.
Ali a gente fica pensando: até onde eu conseguiria chegar em
termos de preparação e de entrega? Quanto de resiliência eu teria?
A corrida, assim como o xadrez, são esportes que expõem o limite da pessoa.
Após concluir o desafio e ainda correr a Comrades (dois desafios brutais, um seguido do outro!), Nato diz: “Foi a maior realização esportiva da minha vida”.
Explicando: a maior realização foi proveniente do maior sofrimento! Uau!
A partir do trecho “A estrada do sucesso” (p. 215), talvez a narrativa perca um pouco o foco. A Comrades deixa de ser o tema central, aparecem reflexões transversais, exemplos fora da corrida, aconselhamentos diversos... o que torna a leitura menos prazerosa.
Mas no geral o livro é muito bom!
Inspirações
Olha, lendo o livro, inúmeras passagens parecia o meu treinador Leandro conduzindo o treino. O jeito de conversar com as pessoas, de analisar a corrida, de apoiar e levantar o moral do grupo, sempre olhando pra frente, com otimismo e uma pitada de orgulho, cobrando das pessoas coisas elementares como empenho e disciplina.
Além da amizade e do amor pela Comrades tatuado na panturrilha, Leandro e Nato têm muitas coisas em comum.
Não se trata apenas... de correr. Trata-se de um modo de sentir a vida e conduzi-la.
É uma ética, mas é também uma estética, pois combina determinação com paixão, força com elegância, em alguns momentos prescindindo mesmo da razão e fincando uma experiência assaz corpórea, humana, imanente. Ou seja, chega um momento em que você não pensa mais, apenas olha adiante e corre. Só corre!
Os antigos gregos chamavam parte disso que estou falando de virtude guerreira: um conjunto de credenciais que identificavam o homem completo, aquele cujas características o distinguiam dos homens comuns.
A força e a coragem para enfrentar grandes desafios obviamente está no centro dessas credenciais.
Embora Hermes seja o deus do atletismo, é possível ver isso em Aquiles e, claro, na figura de Hércules, a representação mais emblemática de tudo isso.
Dor, aprendizagem e busca da excelência
“O mundo real é bem diferente daquela imagem do atleta realizado, com a medalha no peito”
Que passagem forte é essa!
Um dos pontos fortes do livro está na questão de explorar de forma contundente a relação entre o esporte e o convívio com a dor, a fadiga, o cansaço, o desejo de muitas vezes desistir.
Nato relembra que não há vitória de verdade, não há grandeza nem existe superação sem passarmos pela dor.
Isso lembra o trechinho do Murakami: “Na maioria dos casos, aprender uma coisa essencial na vida envolve dor física” (Do que eu falo quando eu falo de corrida, p. 120)
Eu fiquei pensando uma coisa.
Tenho a sensação de que hoje a questão da dor e do desconforto está sendo repudiada pelas novas gerações. Criados num conforto relativamente maior em relação aos pais e avós, rodeadas de telas e mundo virtual, adolescentes e jovens, na escola e na vida cotidiana até aprendem que é preciso empenho e estudo, mas... desconforto? Bem, isso não!
Dor, então, nem pensar.
Não sei como interpretar isso, mas para as novas gerações, a dor está se tornando uma espécie de humilhação desnecessária.
Quem tem filho pré-adolescente em casa, sabe que não é fácil convencê-lo.
Como lhe mostrar que o melhor do ser humano não vem senão à custa de um grande e doloroso esforço, e que possivelmente isso é o que confere a sensação de grandeza e gratificação consigo mesmo, ao final da tarefa realizada?
Certamente, o mais difícil é mostrar isso em atos.
Oxalá meus treinos na corrida e minhas provas sirvam como o compromisso de conciliar o discurso com a prática.
A conquista do green number
“Foi algo mágico, a realização de um sonho... Todos os quilômetros foram desfrutados como se fossem os mais importantes da minha vida”
Sinótico, esse é um dos trechos mais marcantes do livro.
Eu gostei muito porque aqui a gente sente claramente aquela dimensão da gratificação que o atleta tem quando, depois de um longo trabalho, recebe sua recompensa.
A medalha ou o troféu, não paga, no sentido forte,
todo o esforço dispendido.
A questão aqui se projeta para algo simbólico, muito maior, que remete aos
valores do esporte, ao sentido de lutar e vencer, ao crescimento e à superação,
física e mental.
Justamente por ser uma tarefa árdua e que demanda tempo, a glória está reservada apenas aos pacientes e determinados, que passaram pelo crivo e se tornaram merecedores.
Simples mortais como eu (imagina correr 90km!), mesmo não tendo toda essa garra e essa força, se sentem impelidos a colocar mais dedicação nos treinos, a fim de estender o seu horizonte e as suas conquistas.
Memórias do octeto
Vários trechos do livro me trouxeram memórias de fatos que aconteceram nesses poucos anos que estou correndo. Coisas sobre preparação, partilha de metas etc.
Uma coisa muito importante que eu não tinha percebido é a dimensão de envolver a minha família na minha prática esportiva. Seja acompanhando, seja participando.
Ao mencionar a sintonia do octeto, Nato explicita de forma muito feliz a realização que existe quando a gente pratica o esporte acompanhado de pessoas que amamos, pessoas que gostam do que a gente gosta, que encaram o mesmo desafio que nós, sofrendo e gozando das mesmas experiências.
Encontrar pessoas assim compatíveis é uma felicidade à parte.
Desfrutar da companhia delas numa jornada como a preparação para a Comrades então, sem dúvida, é um presente indescritível.
Para quem ainda não começou
Se você não corre ou não pratica esporte, pode não compreender a grandeza das mensagens de um livro como o de Nato Amaral.
Não tem problema. Isso não significa que você não possa usufruir delas.
Cada um de nós tem potencialidades a serem desenvolvidas.
E acredite: são muitas! Pode ser na corrida, pode ser em outro esporte.
À medida que você se permite e se entrega, vai descobrindo como o corpo é forte, como você pode ir bem mais longe e o que até então parecia impossível se torna mais real e alcançável. Essa descoberta é pessoal e não tem como ser traduzida em palavras.
Esse itinerário te leva a ter um corpo mais forte, a ser mais confiante e autônomo.
Não é preciso que a doença te visite!
Não espere 40 anos para descobrir algo tão importante.
Comece o quanto antes!