Enquanto as eleições aqui no Brasil ocupavam a nossa
atenção, um fenômeno importante teve pouca repercussão. Uma caravana de
migrantes, saindo de Honduras, iniciou no último dia 12 de outubro uma
marcha rumo aos Estados Unidos. O movimento, que começou com pouco mais de 150
pessoas, rapidamente foi aumentando em número. Além de hondurenhos, outros grupos
se juntaram, vindos de El Salvador e da Guatemala. Em comum, uma multidão
fugindo da fome, da violência, da falta de oportunidade. Mas também de estados
falidos e de regiões dominadas por gangues ou pelo tráfico, onde a escravidão,
em muitos casos, é destino certo. São mães com criança de colo, adolescentes
sem pais, idosos, crianças, gente de todo tipo, que vê nos EUA a terra
prometida onde poderiam arrumar emprego e tentar uma vida melhor. Junto com as
poucas coisas que cada um pode levar, histórias de assassinatos, desamparo e
muita pobreza. O desespero é o combustível que as força a caminhar. São cerca
de 5000 quilômetros até os EUA, muitos trechos à pé, numa marcha perigosa e
absolutamente incerta, mas que se impõe como a última esperança para quem está
no limite.
Esta não é a primeira vez que uma caravana parte de
Honduras para o território americano. Há registros de outras. Porém, esta
última ganhou notoriedade pelo número de refugiados, pela organização e também
pelo modo como reagiu o presidente americano, utilizando a internet para criticar
a caravana. À medida que crescia e avançava, o movimento atraía mais e mais
pessoas. Gente que, a princípio, não tinha coragem, ao ver os migrantes,
resolveu por na marcha suas últimas esperanças. Houve um momento em que a
multidão atingiu perto de 5000 pessoas, mas foi diminuindo por conta de alguns
grupos avançarem mais rápido, e outros desistirem devido aos riscos de
violência e assaltos durante o percurso. No dia 18 de outubro, pouco antes
de chegarem à fronteira com o México, um duro enfrentamento aconteceu, primeiro
com a polícia gualtemalteca, posteriormente com a polícia mexicana. Entidades de
assistência ligadas aos direitos humanos reportavam uma crise humanitária: os migrantes,
sem qualquer recurso ou abrigo, depois de dias caminhando a pé, sob sol forte, dormindo
no relento, tinham entre eles crianças chorando sem parar, pessoas famintas, outras
exaustas, até doentes. Em 20 de outubro, cerca de 900 pessoas já
entravam no México pelo rio Suchiate. O país abre então a fronteira para aliviar sobretudo
mulheres com filhos, num estado desolador. Em 19 de novembro, a
caravana, com cerca de 3000 refugiados chega a Tijuana, fronteira do México com
os EUA. Perto dali, encontra-se o gigantesco muro construído pelos americanos
para delimitar as fronteiras e evitar a entrada de imigrantes. A partir daí, é
tensão e espera.
Ao observar a situação-limite dos refugiados
latino-americanos, comparações são inevitáveis. E uma pergunta nos vem à mente:
como o Brasil tem enfrentado seus problemas em relação à pobreza,
desenvolvimento e condições de vida digna para seus cidadãos? Em relação a
isso, relatório divulgado recentemente pela ONG Oxfam dá conta de que:
· O número de pobres cresceu
11% em 1 ano, atingindo 15 milhões de brasileiros em 2017 (7,2% da população);
· Os rendimentos do trabalho
dos 10% de brasileiros mais ricos cresceram 6% de 2016 para 2017; já entre os
50% mais pobres, a renda caiu 3,5%;
· O rendimento médio do 1%
mais rico é 36,3 vezes maior que o dos 50% mais pobres;
· Pela 1ª vez em 23 anos, a
renda média das mulheres caiu em relação à dos homens, de uma proporção de 72%
para 70%;
· A diferença salarial entre
negros e brancos também aumentou: em 2017, negros ganhavam em média 53% dos
rendimentos médios de brancos, ante 57% em 2016;
· O volume de gastos sociais
no Brasil retrocedeu ao patamar de 2001;
· Pela 1ª vez desde 1990, o
Brasil registrou alta na mortalidade infantil, que subiu de 13,3, em 2015, para
14 mortes por mil habitantes em 2016.
Se, por um lado, não há como comparar Brasil com nações
pequenas e pobres como Guatemala e Honduras, de outro, também não se pode negar
que a desigualdade, por aqui, é um drama com o qual convivemos há muito tempo. Os
índices da pesquisa acima não seriam alarmantes, se a situação real que vemos
crescer no dia a dia não confirmasse algo mais profundo acontecendo. Enquanto
os jornais reportam, de forma sucinta, temas aparentemente desconectados, como informalidade
no mundo do trabalho, violência urbana e negligência do Estado, o que sentimos,
nos grotões do país, nas periferias das grandes cidades e em regiões mais
pobres, é a morte lenta de um pacto social esgarçado por um conjunto de problemas
gravíssimos. Não se trata mais de identificar partes específicas do sistema enfraquecidas
ou danificadas, mas de reconhecer que toda a estrutura, social e institucional,
corre risco de ruir. Você já pensou: como seria se o Estado, tomado pela corrupção,
pela inércia ou pelo crime organizado, simplesmente abandonasse todas as
suas funções? Se leis, direitos humanos e vida digna perdessem completamente o
sentido? Se o senso mínimo de coletividade e de responsabilidade para com os
outros fosse atropelado por uma guerra civil ditada pelo individualismo mais
indiferente? Quem mais perderia com isso? Quem ficaria mais sujeito às
devastadoras consequências?
Ao olhar para a caravana dos migrantes, devíamos nos
lembrar de que trabalho escravo, índices de violência assustadores e regiões
dominadas já é realidade no Brasil. Em nosso cotidiano não conseguimos mais disfarçar
as imagens desoladoras de pessoas desempregadas, vulneráveis ou doentes
ocupando locais públicos, filas de atendimento, sinaleiros, o entorno de onde
moramos. São sinais evidentes de que a pobreza e a desigualdade têm atingido em
nosso país níveis muito acima do aceitável. Portanto, a marcha dos hondurenhos
é, simbolicamente, uma advertência do que pode acontecer conosco, do que ocorre
com qualquer país que têm suas instituições falidas e onde a desigualdade cinde
a população entre uma minúscula casta que tem e esbanja e a imensa multidão aos
pés desta casta, mendigando para sobreviver.
Pesquisas a nível internacional confirmam o que o
jovem economista Thomas Piketty destrinchou
em seu livro “O capital no séc. XXI”: em países em desenvolvimento como o
Brasil, os ricos estão ficando cada vez mais ricos, e os pobres, mais pobres. Algumas
fontes apontam que nosso país está entre as 8 nações em desenvolvimento mais
desiguais! Mesmo assim, chama a atenção o crescimento, entre nós, de uma ‘onda
liberal’ expressa em verbos cada vez mais presentes no noticiário:
desregulamentar, flexibilizar, privatizar e enxugar. De repente surge uma panaceia
para nossos problemas, uma agenda centrada não no combate à desigualdade ou no
enfrentamento de nossos gargalos, mas na crítica ao tamanho do Estado. Isso suscita
algumas indagações. Por exemplo: aos que gritam vivas ao capitalismo e repetem
que empresas públicas não podem ser competitivas, fica a pergunta: isso é regra
absoluta? A única solução é entregá-las para o capital estrangeiro? Da noite
pro dia, nos esquecemos de que algumas dessas empresas demoraram décadas para
ser construídas, outras ocupam um papel estratégico em ações governamentais.
Não é possível saneá-las? Se o problema é a burocracia ineficiente do Estado e sua
falta de articulação para responder às demandas sociais – e todos concordamos
com isso – de que modo a simples redução da máquina estatal nos trará as
condições para resolver nossos péssimos índices sociais? Os simpatizantes da
ideia de que tomando os Estados Unidos como referência nosso país vai alavancar,
talvez não saibam que os EUA não são modelo de distribuição de renda, que há
décadas a renda média dos americanos também não cresce (só a dos ricos
cresce!). Portanto, é recomendável cautela com receitas importadas e bordões de
economistas.
Não se trata de persistir num ideário de esquerda ressentido,
desvinculado de questões prementes de nossa realidade. A questão é que o enxugamento
do Estado, rápido e a qualquer custo como se está pregando, pode trazer consigo
uma perigosa fragilização do nosso estado de direito, já capenga. Elementos do Estado de bem-estar social que ainda nos
restam podem ser destruídos. Ouve-se pouco a respeito dos interesses que estão
em jogo nas privatizações anunciadas; há divergências entre importantes
economistas se o melhor a fazer é realmente vender “a prata da casa” para pagar
dívidas, dívidas em alguns casos nunca auditadas. Há, enfim, sérias dúvidas
sobre as decisões que vamos tomar em relação a esse assunto. O risco maior, é
claro, seria abdicarmos da noção de que o Estado tem responsabilidade indispensável
na promoção do social. No Brasil, essa questão é crucial, porque parte
consistente da população depende do planejamento, da ação e da promoção do Estado.
A lorota dos 12 ministérios é uma metáfora do que
estamos falando. Quem pregava que ir além desse número seria desperdiçar
dinheiro e gerar cabide de emprego, hoje já anuncia 20 ministérios! Ou seja, a
realidade é que ainda ouvimos respostas amadoramente simples para problemas
complexos. Se não quisermos que nosso país atinja as condições catastróficas de
uma Honduras ou outros de nossos vizinhos, precisamos prestar mais atenção no modo
como nossa política trata o problema da desigualdade. A semana de protestos dos
“coletes amarelos” na poderosa França, que levou às ruas de Paris mais de 280
mil pessoas sem qualquer convocação de sindicatos, sem a presença de líderes e
com aprovação maciça da opinião pública, é um indício contundente de que, em
toda parte, as coisas estão apertando para o lado dos pobres. Pobres franceses,
pobres hondurenhos, pobres latinos que aqui e ali estão saindo às ruas e se
insurgindo. Haverá tempo para os pobres brasileiros fazerem o mesmo?
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