quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Hábitos pedagógicos

Salve, galera!
Minhas boas-vindas aos alunos que a partir de agora terão aulas de filosofia comigo.
Para iniciar nossa pequena jornada, eu gostaria de conversar sobre hábitos pedagógicos.
Sabe o que é isso? Já leu ou ouviu falar a respeito?

Muitos, mas muitos alunos me procuram perguntando coisas que, apesar de diferentes, resultam no mesmo assunto. Como o tema é importantíssimo e aparece recorrentemente, confeccionei esse post para reunir algumas sugestões que eu acredito poderão ajudá-lo a aprimorar-se nos estudos.

Por favor, leia a postagem até o fim, ok!

O que são hábitos pedagógicos?
São um conjunto de ações que, praticadas constantemente, tornam-se um hábito, algo que em longo prazo trará ganhos substanciais ao seu aprendizado.

Vamos começar falando da leitura.
Se você não tem hábito de ler ou lê só besteiras da internet, a aquisição de um hábito pedagógico é indispensável pra você:

- Comece com 15 ou 20 minutos diários, ok?
- Empreste revistas ou livros cuja temática seja do seu gosto.
- Arranje um lugar confortável e reserve um horário do dia que em você sabe que poderá ler sem ser interrompido.

O objetivo é adquirir o hábito de parar tudo e se concentrar na leitura.
Não se esqueça: parar tudo. Focar no assunto. Entrar na atmosfera da história.
Depois de poucas semanas, vá avançando para 30 e, depois, para 45 minutos.
1 a 3 horas de leitura por dia poderá ser necessário de acordo com seus objetivos futuros.

Você terá criado o hábito quando a leitura se tornar algo diário, quando não precisar mais pensar para fazer, nem a leitura for um incômodo.

Por que precisamos de hábitos pedagógicos?
- Porque a leitura, assim como a corrida, por exemplo, não são, no início, atividades entusiasmantes. Vai um tempo até que nos acostumemos, até que comecemos a desfrutar do prazer e dos benefícios que elas nos oferecem;
- Porque não são todas as pessoas que têm aquela personalidade tenaz, que abraça objetivos difíceis, de longo prazo e não descansam até atingi-los. Além de um objetivo, a maioria de nós precisa de estratégias e de rotina. Do contrário nos perdemos ou nos cansamos;
- Porque nossa vida está sujeita a altos e baixos. As oscilações cotidianas às vezes nos deixam mais, às vezes menos motivados. Uma rotina sólida de leitura nos ajuda a não desistir.

Um pouquinho... todos os dias
Note que a noção de hábitos pedagógicos não serve apenas para a leitura.
Todo aprendizado evolui quando a gente começa devagar e vai avançando de forma consistente.
O segredo é um pouquinho todo dia. Não importa o seu objetivo. Em quase tudo, é assim que funciona. Se sua meta é modelar o corpo, aprender um idioma, ler mais, treinar um esporte, fazer academia ou ampliar os estudos para passar no vestibular: é fazendo um pouco todo dia que você vai ver seus esforços serem recompensados.

No caso da leitura, não adianta forçar uma rotina que não é a sua, pegar livros que são muito complexos ou que não são do seu interesse, tentar ler uma quantidade de tempo a que você ainda não está acostumado... tudo isso só contribui para fazê-lo desistir. É inútil exagerar na dose ou querer ‘tirar o atraso’. Lembre-se: o segredo é um pouquinho todo dia. Não importa o tempo que você desperdiçou até aqui. Se vai começar ou recomeçar, faça-o aos poucos, e comprometa-se em ser consistente.

Tudo interligado
Ao avançar na leitura, você amplia seu repertório de assuntos, enriquece seu vocabulário, estabelece links entre diferentes temas, potencializa sua curiosidade, expande seu conhecimento... porque todas essas coisas estão relacionadas. Na verdade, a teia de coisas interconectadas é ainda mais abrangente. Você já pensou nisso?

Vou dar alguns exemplos. Veja como uma coisa puxa ou ajuda a outra:

- O hábito de ler nos torna mais concentrados. Mas a concentração nos fortalece em outras coisas, como a ponderação e a reflexão frente a decisões delicadas;
- A bagagem que adquirimos com a leitura nos apura o olhar e nos torna mais criteriosos. Coerentemente, esses ganhos nos auxiliam na escrita e na escolha de nossos valores pessoais;
- Ler é um convite a silenciar e a focar. Essas mesmas coisas, curiosamente, são úteis para o ócio criativo, para enfrentarmos a solidão e para buscarmos o autoconhecimento.

Portanto, percebemos que o hábito de ler ou buscar mais conhecimento não é um fim em si mesmo. Nós o buscamos para nos tornarmos aptos a interagir e responder aos diferentes desafios que a vida nos oferece. A questão não é apenas TER mais conhecimento, mas SER uma pessoa melhor, mais bem preparada. Ou seja, quando você começa a se dedicar mais aos estudos, você se expande em outras perspectivas e tem múltiplos ganhos.

Celular e pensamento acelerado
Diante do que eu expus, talvez você responda: "mas eu já leio... tenho um celular e procuro me inteirar constantemente de notícias, atualidades etc."
Vou lhe dizer umas palavras a respeito disso. 
























Você já deve ter ouvido essa frase: “Isso é um celular! Isso é uma arma!”
Ela é sensacional porque expõe a força e as possibilidades desse aparelho, mas também o perigo que ele representa. Sim: perigo!

Você entra na rede para fazer uma pesquisa de Geografia e em dois minutos você está vendo vídeos do youtube que não tem nada a ver com o assunto. Você tá lendo um texto ou vendo algo importante e é interrompido a todo instante por mensagens que estão chegando. Você guarda o aparelho, tenta ficar sem ele, mas sente um comichão: parece cada vez mais difícil vivermos desconectados.

A questão é que pela estrutura do celular, que conjuga ações simultâneas, automatização de respostas, linguagem hiperlinkada e uma conexão aberta e permanente, você terá dificuldade em conciliá-lo com os objetivos de uma leitura profunda a qual, ao contrário dos elementos expostos acima, demanda silêncio, foco, imersão. 
 

 

Outra coisa: pessoas que não largam o celular estão sujeitas ao que chamamos de pensamento acelerado. O ver muita coisa, e rapidamente, dificulta o cérebro guardar, registrar. Além do contato superficial, persiste a sensação de que há muita coisa pra ver, mas não há tempo suficiente.

Embora saibamos que a internet mudou a nossa forma de pensar, nosso cérebro não é multitarefa. Se inventamos fazer 5 coisas ao mesmo tempo, cada vez que alternamos nossa atenção, o cérebro precisa reajustar-se e recomeçar. É mais energia gasta. É serviço feito com menos qualidade.

Não nos iludamos! Questões relacionadas a detox digital dominarão a pauta de nosso tempo. Seremos confrontados com impactos cada vez mais negativos, em termos comportamentais, físicos e neurológicos, trazidos pelo uso do celular e a vida conectada. Se você não acredita nisso ou reivindica que desconfiança em relação ao celular deve ter embasamento científico, assista o vídeo recente de Claudia Feitosa sobre isso:
 


Uma conclusão prévia é que se atualmente nossa rotina não nos permite prescindir do celular, que pelo menos saibamos usá-lo com parcimônia, a fim de que ele não nos atrapalhe nem nos roube um tempão! 

Faltou uma última palavra, não? Sobre o quê? Ora, sobre as redes sociais! 
Vou deixar um vídeo de Pedro Calabrez, profissional de neurociência, que bota o dedo na ferida e explica direitinho os desafios das redes para nós. Pedro repete muitas coisas, mas a insistência dele em frisar determinadas mensagens me parece que vale a pena. 


Por ora, é isso!
À medida que novos elementos forem surgindo em nossas conversas, eu vou atualizando essa postagem.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Filme "Parasita" e primeiro debate (2ºs anos)


Esta postagem tem três partes. Eu começo comentando um pouco a respeito do filme “Parasita”: contexto, enredo, links. Na sequência, eu tomo o mote principal do filme, que é uma reflexão sobre o capitalismo, e entro na questão das desigualdades sociais, a fim de fazer rápidas comparações com a nossa realidade. Por fim, é no meio dessas comparações que aparece o tema de nosso primeiro debate. Acompanhe!

Um filme, várias leituras

 “Parasita”, do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, já tinha faturado a Palma de Ouro em Cannes (França) e outros prêmios importantes em vários países. Agora em fevereiro, nos Estados Unidos, contrariou expectativas na festa do Oscar, levando o prêmio de melhor filme, direção, roteiro e filme internacional. Foi uma surpresa. Nada mal para quem não era cotado como favorito.

Porém, não foi por acaso que o filme recebeu todos esses prêmios. A película é uma mostra rica e complexa do nosso tempo, marcado pelo capitalismo globalizado, pelo avanço da concentração de renda no mundo inteiro e consequentemente por níveis de desigualdade cada vez mais altos. Apesar de o filme ser sul-coreano, a realidade por ele retratada pode ser facilmente reconhecida em vários países mundo afora, inclusive o Brasil. Aliás, quem diria que a Coréia do Sul, tão elogiada por nós e lembrada como modelo de educação, tivesse o seu lado escuro, ou seja, o seu porãozinho para esconder coisas indesejáveis?

Se você quiser saber por que “Parasita” é sucesso de crítica e público, clique aqui. Se assistiu o filme e gostaria de ouvir alguns detalhes que certamente passaram despercebidos, clique aqui. Se quiser acompanhar uma pitada de psicanálise na avaliação do prof. Christian Dunker sobre o filme, clique aqui. (Atenção: Dunker solta bastante spoiler!) Por fim, se quiser ler a análise bem completa de Fábio Palácio para a Ilustríssima, da Folha, clique aqui.

Para os nossos interesses, vale destacar que o filme é riquíssimo em cruzamentos.
Ele apresenta personagens complexos, numa atmosfera em que não são apenas famílias que se cruzam, mas é uma hierarquia social que se choca. Não podemos discutir apenas a perspectiva econômica, esquecendo-nos da estética, na qual aliás o diretor explora de forma brilhante o suspense, o cômico e o trágico, brindando-nos com um final absolutamente inesperado.

De forma bem arranjada, elementos como janelas, porões, odores e a própria chuva trazem uma conotação própria, que nos leva a refletir sobre como a realidade sofre variações cruéis, conforme a posição de quem observa. O filme se assenta numa dualidade: existe o que se mostra, o que aparece. Mas por trás ou por debaixo disso, existe muito mais.


Desigualdade: das telas para a vida real

Bong Joon-ho disse que seu filme tratava sobre o capitalismo. Em tempos de polarização exacerbada, “Parasita” explora bem os contrastes, ao mesmo tempo que utiliza a linguagem metafórica de forma magistral. Pensando no título do filme e olhando as duas famílias tão díspares, a gente se pergunta quem suga quem nessa relação. Por outro lado, poderíamos indagar quem é que tem consciência da realidade ali? Quem a vive de fato?

Para a maioria dos brasileiros, a realidade apresentada no filme tem muito de parecido com a sua própria. No país que é um dos campeões mundiais em desigualdade e concentração de renda, a vida da maioria dos brasileiros se resume a uma luta desesperada e permanente pela sobrevivência. É um insulto ver instituições financeiras como os bancos faturando lucros recordes, enquanto milhões de pobres que compõem a parte mais vulnerável do tecido social sequer tem a garantia de um bolsa-família. No Brasil, segue intacta a tendência “os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres”. Mesmo a desigualdade sendo escandalosa, para além das reportagens de jornal, o que ela provoca talvez seja uma soma esparsa de indignação e queixas, nada além disso, nada que abale o status quo. Com dizem os personagens de Parasita, o jeito é cada um ‘pensar um plano’ e se virar como pode.

Se a vida nas telas não está tão distante da vida real, o filme de Bong Joon-ho introduz uma coisa que nos inquieta: por que as famílias pobres, que vivem em imundos porões (ou favelas), partilhando da mesma subvida e sofrendo os mesmos ais, são incapazes de se unir? No Brasil, como uma população tão grande e tão humilhada, ainda sofre sozinha e isolada? Por que não existe solidariedade entre os pobres?

Disparidades e paradoxos

Em um país de condições tão díspares como o nosso, é impossível não se horrorizar com determinadas coisas. Por exemplo, a gente viu final do ano passado que o aumento do Fundo Eleitoral será custeado com recursos retirados da educação e da saúde. Isso mesmo! Para quem estava distraído quando essa veio à tona, confira aqui: de 1,7 bilhões, o fundo foi engordado para 3,8 bilhões. O Congresso votou e o presidente chancelou.
No país em que mais da metade da população vive com R$413,00 por mês, os políticos conseguem com algumas canetadas auferir uma quantidade astronômica de dinheiro para suas campanhas. Eu te pergunto: você lembra de ter visto ou ouvido protestos  a respeito disso?

As disparidades são tantas no Brasil que nós poderíamos elencar uma miríade de índices apontando contrastes estarrecedores, verdadeiros absurdos, que nos fazem pensar como é possível um estado de direito onde alguns são e outros não são, onde alguns poucos têm para desperdiçar enquanto a maioria é relegada a uma condição de mendicância.

Ok! Mas se há pessoas que passam por humilhações para receber a ninharia de um bolsa-família, por exemplo, há outras que têm recursos ou procuram meios de fazer valer o seu direito, exigindo do estado a devida atenção para o seu problema individual. E conseguem.
Um exemplo disso está na história de Rafael Fávaro que você vai ver a seguir.  

Assim como no quesito assistência social, o estado brasileiro também é pouco zeloso na saúde. Todos temos conhecimento de como o SUS, embora de acesso democrático, é marcado por filas, por demora no atendimento e por uma lista de espera de meses ou até anos quando a demanda envolve cirurgia. A coisa varia conforme o estado, mas em toda parte há sinais de calamidade ou mesmo de colapso no sistema.

O caso de Rafael é especial, sua doença é rara. Porém, enquanto milhões esperam para ter o seu direito à saúde atendido – e algumas pessoas chegam a morrer esperando – há os que, como ele, processam o estado para agilizar e garantir o acesso a remédios de alto custo. Índices mostram que têm aumentado o número de pessoas que estão fazendo isso, ou seja, recorrendo à justiça para garantir tratamento médico.

O fato de o Estado ser obrigado a bancar tratamentos caros para alguns indivíduos, exclusivamente, levanta uma questão sensível. Se não temos dinheiro para garantir tratamento básico a milhares ou milhões de pessoas que procuram o serviço diariamente, porque devemos desembolsar uma grana para custear o tratamento de um indivíduo apenas? A concessão do benefício, ainda que por medida judicial, implica num paradoxo. É isso que vamos debater.

Encaminhamentos para o debate

Primeiro de tudo, leia a reportagem daRevista Época sobre o paciente de 800 mil. Aqui se encontra a história de Rafael Fávaro e a problemática que enseja o nosso debate.  
Leia com bastante atenção. De preferência, imprima a reportagem.

Nosso debate vai funcionar da seguinte forma.
Vamos dividir a sala em dois grupos.

Em linhas gerais, o primeiro deles vai:
- buscar na legislação brasileira uma fundamentação para o direito à vida e à saúde,
- defender o direito individual,
- sustentar por que Rafael está certo em processar o Estado.

O segundo grupo, em contrapartida, vai:
- utilizar o cálculo utilitarista para apontar limites do direito individual;
- apresentar uma perspectiva mais coletivista que, em sintonia com a realidade brasileira, faça contrapontos ao direito individual;
- buscar uma fundamentação que justifique, do ponto de vista orçamentário e de outros pontos de vista, porque não é correto o Estado bancar tratamentos caros para um ou outro indivíduo.

Atenção: os grupos têm de ter um número equivalente de pessoas. Os alunos da turma devem formar uma lista e articular previamente esse equilíbrio. Quando eu chegar para o debate, os grupos já devem estar montados, com todos os alunos inscritos. Se isso não tiver acontecido, para fins de rápido encaminhamento, eu dividirei a turma em pares e ímpares. Os pares constituirão o grupo 1, os ímpares, o grupo 2.

Os critérios para o debate são os seguintes: 

- Ouvir o outro até o final, em silêncio, sem interrompê-lo;
- Prestar atenção no que o outro diz, ponderar, refletir se ele não tem razão no que fala;
- Fazer uso da palavra de forma argumentativa, ou seja, trazendo elementos sólidos, resultantes de reflexão e pesquisa. Não serão tolerados rodeios, improvisações ou brincadeiras;
- Utilizar, durante a arguição, uma referência ao filme "Parasita";
- Em hipótese alguma levar a discussão para o lado pessoal. Lembre-se de que estamos debatendo ideias e não pessoas;
- O objetivo desta atividade é desenvolver nosso potencial argumentativo, explorando os pontos, enriquecendo e ampliando a conversa. Não haverá "vencedores" do debate.

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Clipping:

Um único remédio custou ao SUS R$2,44 bilhões em 11 anos, revela estudo
(Folha de S. Paulo - Cláudia Colucci - 02/03/2020)

Patente de um dos remédios mais caros do mundo agora é pública
(Agência Brasil - 20/04/2018)