Conceito que foi tema
de importantes debates na Antiguidade, mímese apresenta contornos bem
diferentes na concepção de arte de Platão e de Aristóteles. Para tratar desse
assunto, eu reproduzo abaixo o verbete da Routledge
Encyclopedia e faço alguns acréscimos.
Mímese
é um dos mais antigos e fundamentais conceitos de estética produzidos no
Ocidente. Desde a antiguidade, o conceito foi difundido e ao longo da história
reinterpretado por diferentes segmentos artísticos, como a literatura, a música
e a pintura. A princípio, mímese significa imitação, representação, cópia de
alguma coisa. Ele pode ter, ainda, a finalidade de recordar algo, de apresentar
uma mensagem ou mesmo exprimir algum ensinamento.
Na
antiguidade grega temos uma cultura majoritariamente oral, basta lembrarmos as
audições, os recitais de oradores e poetas, as performances dos sofistas ou
ainda a representação feita por atores durante encenações das tragédias. Tudo
isso compunha o substrato do conhecimento, e também da própria ética, ou seja,
dos valores partilhados pelos gregos. Daí ser de grande interesse para um
filósofo como Platão discutir a arte do seu tempo, chamando para si a tarefa de
retratar e avaliar o papel de artistas como os poetas-rapsodos e os atores.
A
relação entre mímese com figuras de autoridade do passado (pais, heróis e
autores) era algo profundamente arraigado na cultura grega antiga. Trata-se da
necessidade de relembrar as proezas, os grandes momentos e os eventos
singulares que ocorreram na história, cujos personagens, feitos e ditos, também
se tornaram inesquecíveis. Essa necessidade de trazer de volta à memória os
eventos do passado dá ao conceito de mímese um significado mais próximo ao de reatualização.
O ato de reatualizar, por meio da poesia, do teatro ou de qualquer outra forma
literária, se impõe a nós por conta de dois fatores:
a)
os eventos a que eles correspondem foram consagrados ao longo do tempo, possuem
um valor especial, mais importante do que a nossa realidade cotidiana; por conta
disso, nós nos sentimos impelidos a rememorá-los, para inclusive não cairmos na
abstração e na irrelevância;
b)
ao reatualizá-los, somos como que inspirados e iluminados pelo seu esplendor, o
que nos permite escapar da banalidade cotidiana.
Mímese
carrega uma ambivalência: dependendo das circunstâncias, o conceito pode
significar a inferioridade da atualização comparada ao fato ocorrido ou a
relativa superioridade que ela adquire por sua participação temporária no
prestígio, na glória daquele fato.
Tornou-se
um dos lugares-comuns mais imediatamente lembrados as críticas de Platão
dirigidas aos artistas. Para ele, a preocupação da filosofia é a de alcançar a
verdade. Mas, na República (livro II), por exemplo, nós vemos Sócrates
advertindo que nós “não podemos levar a sério a poesia como algo capaz de
alcançar a verdade”, e que “aquele que escuta a poesia tem de ficar alerta
contra suas seduções”.
Ou
seja, para Platão, a busca da verdade não pode ser confundida com o prazer da
arte retórica, o qual, na época seduzia multidões, mas sem critérios e
interesses mais profundos.
Por
conta disso, na mesma linha, também o teatro será rechaçado. Neste caso, o
problema está nos atores, que estão mais interessados em persuadir o auditório
do que chegar à verdade. Ainda na República, Sócrates aparece desferindo uma
crítica ferrenha a Homero, pai e maior de todos os poetas, afirmando que os
ensinamentos deixados por ele são testemunhos inconvenientes à educação da
juventude.
O
trabalho do poeta, assim como o do carpinteiro que confecciona a cama (exemplo
dado por Sócrates no livro X da República)
é um trabalho imitativo, uma cópia. E por ser cópia, não pode ser comparado à
realidade.
São
na verdade três os usos empregados por Platão na República:
a) No livro II, falando
do conteúdo da poesia, aplica o termo, de forma geral, à relação de significado
entre as palavras e as entidades a que elas se referem;
b) No livro III ele
explora o fato de que, na tragédia grega, seres humanos comuns desempenham o
papel de heróis lendários e deuses, a fim de criar a ficção. Aqui temos uma
forma peculiar de mímesis como um termo técnico que abrange um gênero literário
específico: o drama, no qual os artistas nunca falam em sua própria voz, ao
contrário da narrativa e de outras formas;
c) No livro IV, ele
estabelece a tripartição da alma e explica como níveis mais baixos da realidade
imitam níveis mais altos. No livro X ele conclui que toda poesia e mesmo as
formas não dramáticas são ilusoriamente miméticas, pois estão a três graus da
realidade.
--------
Aristóteles
mostra uma visão diferente de Platão. Nele não encontramos essa conotação
negativa e mímese significa simplesmente representação, algo que indica que o
mundo narrado em um poema, por exemplo, é muito semelhante a ele, embora não
seja idêntico. Nesse sentido, a visão aristotélica se aproxima bastante do
conceito moderno de ficção.
É
na Poética que encontramos as
críticas de Aristóteles ao tratamento dado por Platão ao conceito de mímese.
Aristóteles estende o significado do conceito para além do gênero dramático,
retirando-lhe qualquer pecha de inferioridade na comparação com uma realidade
independente.
Há
uma crítica a Platão, no sentido de que se mímese envolve qualquer literatura
imaginativa, então os próprios diálogos platônicos são miméticos, visto que
descrevem não uma realidade que realmente acontece, mas o tipo de coisa que
poderia acontecer.
A
Poética de Aristóteles é uma teoria sobre a construção que o poeta faz
(poiésis) de uma representação (mimesis) da ação (práxis) do personagem. Numa
tragédia, por exemplo, não observamos o ator cometer aquelas ações horrendas,
até porque isso seria desagradável, mas o vemos representar, imitar (mimesis)
aquelas ações, e esse gesto nos proporciona um prazer reflexivo.
A
mímesis impede a poiésis do poeta de construir uma praxis real, mas as possibilidades que ela descreve são reais, e
não fictícias, daí vermos Aristóteles ressaltar
o componente cognitivo dentro do prazer estético. Com Aristóteles, mímese não
é mais uma arte enganadora, mas um universal antropológico que nos proporciona
um prazer cognitivo, algo que somente nós humanos podemos fazer (os animais não
imitam).
Ao
ver os fatos se desenrolarem e os personagens representarem, nós reconhecemos e
até dizemos “este homem” ou “este caso” do passado é semelhante àquele caso
(atual) que eu ouvi ou vi. Portanto o mundo retratado na poesia não é um mundo
esvaziadamente fictício, mas uma versão razoável de nosso próprio mundo real. O
poeta não nos mostra o que aconteceu lá trás ou o que está acontecendo, ele
mostra o tipo de coisa que poderia ter acontecido, o que pode acontecer.